Logo NAÏF 2012 no tema 1

O Inesperado na Arte

Marta Mestre

Crítica e historiadora de arte

O nosso olhar transforma-se muito mais do que a arte. A nossa perspectiva sobre as coisas emancipa-se de uma ordem fechada e discursiva, e existe como um emaranhado emotivo que articula um jogo de imagens e de tempos circulando confortavelmente entre “alta” e “baixa” cultura.

A arte espontânea, ou seja, a produção visual que é realizada à parte do mundo institucionalizado da arte, tem um poder cada vez mais expressivo de empatia e sedução, e isso deve-se ao enfraquecimento da rígida distribuição de gêneros, temas e hierarquias ao longo do século XX.

Um pouco por toda a parte, e com maior ou menor grau de expressividade, reparamos que a “arte espontânea”, aquela que está sempre onde menos esperamos, onde ninguém pensa nela, nem pronuncia o seu nome, tem admiradores por todo o mundo e realiza um caminho excepcional de afirmação, seja no Brasil, seja... na Finlândia.

Em 2006 fiz uma viagem à Finlândia e tive oportunidade de visitar artistas e produções da chamada “arte espontânea”. Foi uma experiência intensa, na qual pude perceber a importância simbólica, cultural, identitária e econômica que esse campo artístico pode ter. Tomar agora conhecimento com a produção brasileira que chega à Bienal Naïfs de Piracicaba faz-me constatar que, apesar de serem países com realidades muito diferentes, existe um traço comum que confere unidade às suas produções visuais.

O jargão que os especialistas usam para caracterizar esse tipo de produção é extenso: arte naïf, arte outsider, art brut, raw art, folk art, arte visionária, “ambientes visionários” etc.; contudo, é uma mesma ordem de imaginário e crença, imagens que parecem ter saído de um Éden acabado de descobrir, e que são intensamente povoadas de anacronias e de obsessões. Sobrevivências de uma “história sem nome” que nos chegam de forma avassaladora, intensa e disruptiva.

O caso finlandês tem contornos épicos, pela sucessão dos seus episódios e pela forma com que, em menos de trinta anos, soube trazer uma enorme visibilidade para um campo até então desconsiderado. Começa com a história de Veli Granö, artista contemporâneo que realiza a série de fotografias “Onnela — Trip to Paradise”, retratos de vinte artistas folk e outsider no contexto dos seus mundos idiossincráticos. ­A série é exposta em 1986, numa galeria de Helsinki, e gera o imediato interesse de várias camadas da sociedade.

O exemplo europeu é recheado de acontecimentos muito contundentes na criação de uma estética de corpo inteiro com o apoio do Estado: a abertura do “Contemporary Folk Art Museum” (na cidade de Kaustinen); a liderança no programa europeu “Equal Rights to Creativity — Contemporary Folk Art in Europe”, em parceria com a Hungria, Itália, Estônia e França, ao qual se associou uma editora para a publicação de edições de grande qualidade dos trabalhos dos artistas “espontâneos”; a exposição “In Another World” realizada no Museu de Arte Contemporânea de Helsinki — Kiasma, uma seleção da melhor arte espontânea finlandesa, a par dos artistas históricos das coleções europeias (Alain Bourbonnais, Aloïse Corbaz, Madge Gill, Chris Hipkiss, Giovanni Battista Podesta, Henry Darger ou Adolf Wölfli); e a condecoração, em 2007, de Veijo Rönkkönen, um dos artistas fotografado vinte anos antes por Veli Granö, com o “Finland Prize”, prêmio nacional do Ministério da Cultura, pelo seu trabalho que recebia a atenção do curador internacional Harald Szeemann.

Esse movimento levou à necessidade de inventar uma designação para a “nova” arte: ITE art, “Itse Tehty Elama”, que significa “self made life”, e institui a ideia de que a vida existe pela dimensão estética de cada um de nós.

O caso finlandês faz-nos pensar em vários aspectos. Sugiro dois para reflexão, a respeito do contexto da Bienal Naïfs do Brasil, em Piracicaba.

Em primeiro lugar: Qual o sentido da designação “Bienal Naïfs”?

A experiência do júri deste ano e a consulta da documentação das edições anteriores reforçam mais uma vez que a produção que chega até Piracicaba vinda de todo o Brasil extrapola o universo da arte “naïf”. Trata-se de um termo apertado para imagens demasiado irrequietas, um termo que não considera as suas diversas e improváveis procedências artísticas, como poderia ser o caso da arte indígena, da arte dos doentes mentais, a arte realizada em estados alterados de percepção, para citar alguns exemplos.

Podemos, inclusive, falar em “inadequação” do termo naïf ao universo dos artistas que tem passado pelas bienais de Piracicaba, se lembrarmos aquilo que Freud escreveu a propósito de “fetiche”, um dos elementos que melhor caracteriza a natureza das imagens naïf.

Ao introduzir o conceito de “fetiche”, Freud (1) referia-se ao fato de ele formar uma imagem totalitária. A imagem fetiche é uma imagem “estanque” ou “inanimada” que faz lembrar uma espécie de paragem do olhar. Segundo Freud, o que constitui o fetiche é o momento da história em que a imagem para, como se fosse a imobilização do fantasma. O fetiche é ainda um véu, uma cortina, um “ponto de recalcamento”. É por isso que o olhar maravilhado do naïf nos parece muitas vezes cristalizado, um eterno retorno. Como refere Laymert Garcia dos Santos: “a arte naïf é a arte da emoção, um grito do coração” e acrescenta que: “o efeito mágico produz-se no olhar, ele cristaliza a imagem” (2).

O ponto de vista de Freud sobre a natureza das imagens naïf faz absoluto sentido quando se lamenta que um artista “naïf” copia uma fórmula que dá resultado e que a repete sucessivas vezes. Porém, não se trata de uma resposta a um mercado entretanto conquistado, mas a própria natureza da imagem naïf: o jogo de repetição dos elementos é necessário para a produção do fetiche.

Pelo seu caráter circunscrito, o termo “naïf” é parcial para a produção extensa que chega a Piracicaba e limita a possibilidade de pensar o futuro da Bienal. Não obstante ter sempre existido dificuldade em encontrar uma designação confortável para esse campo artístico, desde Jean Dubuffet a Roger Cardinal, os finlandeses “resolveram” a questão inventando esse nome que mencionamos: ITE art, que é mais do que um label de marketing apenso a uma política cultural confinada. Por se relacionar muito mais com a vida do que com a arte (como a poética de Joseph Beuys, artista alemão para quem a vida existia pela dimensão estética de cada um), ele assegura a longevidade ao campo artístico de que estamos a falar.

Um segundo aspecto para reflexão: de que forma a curadoria pode dar visibilidade à “arte espontânea”?

A curadoria é essencial para trazer para o campo codificado das artes visuais as expressões características da vida ordinária, dos cotidianos, dos territórios domésticos, dos vazios rurais, do mundo indígena, primitivo, dos estados alterados de percepção, entre outros. “Mundos” que muito gradualmente tem vindo a fazer parte das agendas e das programações dos museus, mas que, por ironia, revelam seu papel regenerador no cenário da crise da história da arte moderna e contemporânea ocidentais.

A crescente importância das “artes desautorizadas” reforça, inclusive, o fato de muitos críticos e historiadores verem nela uma espécie de “bolha de oxigênio” em face do poder homogeneizador da globalização, da padronização da arte e do seu meio cada vez mais engessado.

Porém, essa potência regeneradora da “arte espontânea” não deverá ser instrumentalizada no circuito fechado que vê a modernidade primeiro e a contemporaneidade depois, por interpostas etapas e como lugares inesgotáveis aos quais acedemos conforme o escafandro que nos leva a maior profundidade.

Consideramos que a capacidade regeneradora da “arte espontânea” tem muito mais a ver com uma função antropológica, que relega a condição estética para segundo plano. Essa função tem a potencialidade de poder gerar um magnífico efeito de espelho que, sob o véu de expormos os outros, deixa passar observações sobre nós, sobre a nossa cultura, as nossas noções de arte, os nossos valores e atitudes.

Um exemplo categórico desse paradigma mais antropológico do que estético foi a exposição Les Magiciens de la Terre, realizada no Centro Georges Pompidou, em 1989. Nela se agrupou, pela primeira vez, arte contemporânea ocidental com arte proveniente do resto do mundo e de diversas categorias. Essa exposição deu sentido ao que Hans Belting viria a designar de “arte global” (3), que, “na sua nova expansão, pode mudar substancialmente o conceito do que é a arte contemporânea e de arte no geral, pois ela está em lugares onde nunca esteve na história da arte e onde não existe qualquer tradição de museu” (4).

Existem, evidentemente, nas palavras de Hans Belting um sério argumento sobre o fim da “história da arte como modelo da nossa cultura histórica” (5), e uma crítica sobre os lugares de enunciação que tradicionalmente produziram os discursos sobre a arte e, no caso, sobre “arte espontânea”.

É preciso lembrar que o otimismo que existe hoje sobre esse campo artístico cada vez mais divulgado e reconhecido viveu um regime de apartheid cultural durante muitos anos. Como bem lembra Michel Thévoz, “mesmo no museu imaginário de Malraux, as obras de Aloïse ou de Guillaume Pujolle ficavam no purgatório com a legenda anônima e infamante de desenhos de loucos. E quando, na Documenta v de Kassel, em 1975, se teve a audácia de introduzir as obras de Adolf Wölfli e de Heinrich-Anton Muller — sem dúvida os mais inventivos de toda a manifestação — foi isolando-os numa seção designada de psicopatológica(6).

Como referimos anteriormente, cada vez mais esse apartheid tem vindo a ser desfeito porém, ainda persistem alguns paradoxos. Vou finalizar sinalizando um que, penso, que ainda gera importantes entraves. Trata-se de um paradigma pedagógico que é, muitas vezes, aplicado à “arte espontânea” e que reconstitui indefinidamente a desigualdade que pretende suprimir, como se houvesse uma igualdade como objetivo e uma “fratura” social, estética, simbólica a ser eliminada. É um jogo dúbio que pode significar coisas completamente diferentes: conduzir os artistas a restarem no seu “paraíso perdido”, vendo aí a sobrevivência de uma arte que não deveria ser corrompida ou construir a sua “emancipação” com vista a uma “igualdade de inteligências” (J. Rancière).

No primeiro dos casos, existe um discurso que acomoda a arte e os artistas espontâneos numa subalternidade e que não lhes dá voz. Privados da palavra, essa arte e esses artistas falam somente por interposta pessoa (aquele que os “descobriu”, o galerista, o júri, o historiador etc.). Por isso é que essas imagens são normalmente “mal vistas”, e mal vistas porque mal ditas, mal descritas, mal legendadas, mal fotografadas, mal utilizadas.

No segundo caso, a “emancipação” reside numa restituição dos lugares e dos sujeitos de enunciação de modo a reconhecer e a desenvolver todas as consequências da “igualdade das inteligências”.

Talvez seja por isso que algumas pessoas dizem que deveríamos sempre olhar para um trabalho de arte espontânea com seu autor do lado, ouvindo a sua estória.

Tudo se passa como se esses artistas, no lugar de terem pintado, esculpido ou bordado, tivessem narrado as suas vidas, seus mundos, os lugares de onde vêm e de onde todos vimos. Tenho a maior curiosidade em saber a estória que conta Maria Caldeira Bochini, na tela em que três meninas brincam sem brinquedos, ou que Carmela Pereira me cante a canção que os seus seres carnavalescos estão a festejar. Mas, muito particularmente, o silêncio em tons pálidos trocado entre os dois homens de “O barco do pescador”, do pantanal de Jefferson Bastos.

 

1 Sigmund Freud, “Souvenirs d'enfance et souvenirs-écrans”, in Psychopathologie de la vie quotidienne, Payot, Paris, 2004.

2 Laymert Garcia dos Santos, “Regarder autrement”, in Histoires de voir (catálogo da exposição) Fondation Cartier pour l’art contemporain, Paris, maio 2012.

3 “The Global Contemporary. Art Worlds After 1989”, a exposição realizada pelo ZKM | Museum of Contemporary Art (de setembro 2011 a fevereiro de 2012) usa a data de “Les Magiciens de la Terre” como um marco cronológico do conceito “arte global”: http://www.globalartmuseum.de/site/act_exhibition.

4 In http://globalcontemporary.de/en/exhibition.

5 Hans Belting, O Fim da História da Arte, Cosac&Naify, p.12.

6 Michel Thévoz, Art brut, psychose et mediumnité, Éditions de la différence, Paris, p.10.