Interior Expressivo


As obras de arte são vistas, há séculos, como se fossem algo mais do que aparentam – como se alguma potência se ocultasse por trás das cores, sons, materiais, signos e temas empenhados. Como consequência, o artista foi sendo, aos poucos, considerado um trabalhador diferente dos demais. Mas onde residiria esse excedente de sentido, se ele não está localizado na presença física da obra? Estaria além da matéria, transcendendo-a? Ou, pelo contrário, seria imanente à materialidade, e o esforço do artista consistiria em fazê-la daí emergir?

Não foram poucos os que sugeriram que tal excedente seria a atualização de algo que pré-existiria no artista. De inclinação romântica, tal visão disseminou-se como tentativa de compreender o inefável do fazer artístico. Há aqui a suposição de uma riqueza interior do artista, que se torna acessível por meio de sua prática expressiva.

A tese de uma expressividade que provém do interior merece ser explorada. A décima segunda edição da Bienal Naïfs do Brasil é uma oportunidade para isso, já que se trata de uma iniciativa que, há mais de duas décadas, joga luz sobre uma produção cultural ligada ao Brasil profundo. O reconhecimento do valor da arte naïf liga-se à ideia da riqueza cultural do interior do país. Mas o que isso implica?

O historiador cearense Capistrano de Abreu diagnosticara, há mais de um século: “Queixam-se os primeiros cronistas de andarem os contemporâneos arranhando a areia das costas como caranguejos, em vez de atirarem-se ao interior”[1]. Para o Brasil[2], o litoral é algo dado; já em relação ao interior, a situação é diferente: coube conquistá-lo. Afastado por densa natureza e distâncias consideráveis, a noção de interior tornou-se materialização do “outro”, habitado por imagens distintas e entrelaçadas: o caipira, o indígena, o sertanejo, o natural, o espontâneo.

O interior brasileiro derivou suas peculiaridades, em boa medida, da dificuldade de ser alcançado. Assim, desenvolveu formas próprias de significar o mundo, que operam segundo um tempo específico, marcado pela comunhão entre atividades cotidianas e processos de ritualização. Como avesso da concepção ocidental de arte, a cultura no interior se refere a artistas que não estão destacados do tecido social – seria mais cabível afirmar que eles concentrariam, por meio de suas práticas, os saberes dispersos pela coletividade.

O interior geográfico pode servir de metáfora para a subjetividade do artista naïf, arredia a abordagens diretas e que exibe sua riqueza ao se impregnar das coisas do mundo. Se há ingenuidade, como sugere o termo em francês, ela é a denominação dada a uma articulação espontânea entre o “eu” artístico, os conteúdos da vida e as matérias-primas mobilizadas, sem a mediação de conhecimentos institucionalizados. A ausência dessa mediação, identificada como autodidatismo, permitiria um vislumbre imediato da interioridade do artista por meio de suas obras.

A aderência do artista aos valores do entorno permite que a revelação de sua interioridade coincida com a explicitação do seu próprio ambiente: o interior. É assim que o imaginário das pequenas cidades brasileiras encontra uma de suas traduções mais expressivas. Desse modo, é emblemático que o curador Diógenes Moura, a partir do tema “O santuário refletido no espelho”, tenha sugerido a justaposição das obras dos artistas naïfs a um conjunto de fotopinturas cearenses, reunindo itens do Mestre Júlio e da coleção Titus Riedl.

O entrelaçamento dos artistas naïf com o contexto cultural interiorano adquire novas feições com a proximidade de suas obras às fotopinturas, importante manifestação identitária do Nordeste brasileiro. Simplicidade, tendência à planificação, equilíbrio compositivo e interesse pelas qualidades cromáticas – tais aspectos, comuns a essas expressões, configuram um cenário mais amplo, que é a própria realidade interiorana da qual emergem tais expressões.

A arte estabelece toda sorte de relações, dentro do campo ampliado da cultura, com outras formas de dar significado às coisas. A ação cultural do Sesc explora o potencial educativo dessas relações – por vezes harmônicas, por vezes tensas –, já que elas refletem as dinâmicas de rupturas e continuidades da vida social. Nesse contexto, a presente publicação, ao dar forma à memória da exposição realizada no Sesc Piracicaba, reafirma um compromisso com o trato contextualizado da cultura, nos quais as ambivalências não são suprimidas, mas expostas aos indivíduos, cabendo a eles a disposição de investigar ou não suas particularidades.

 

Danilo Santos de Miranda

Diretor Regional do Sesc São Paulo

 

[1] Capítulos de História Colonial, finalizado por Capistrano de Abreu em 1907.

[2] Após a chegada dos portugueses, ou seja, a partir de 1500.