Expressão Genuína
Kelly Teixeira
Arte-educadora, assistente da Gerência de Artes Visuais e Tecnologia do Sesc SP
O maior desafio de qualquer salão de arte está justamente na seleção dos artistas que farão parte do projeto e poderão expor seus trabalhos a um sem número de visitantes. A dificuldade reside essencialmente na principal função do júri, que é, obviamente, o julgamento. Como se classifica um trabalho de arte? Que elementos são levados em consideração para escolher uns em detrimento de outros? Como alinhar o pensamento de profissionais advindos de áreas próximas, mas com vivências e experiências únicas? Para amenizar todas essas questões, tive a honra e a alegria de ser convidada a fazer parte dessa empreitada ao lado de tão renomados profissionais que, embora sem unanimidade, formaram um júri coeso e harmônico.
Para além dos critérios pautados em regulamento, ou daqueles pré-estabelecidos ao que se suporia fazer de um trabalho de arte - seja ele popular, seja contemporâneo - merecedor de ser selecionado, ousamos nos basear no elemento que nos parecia mais verdadeiro: a poesia. Poesia esta que apareceu, por exemplo, na mudança dos suportes, na ousadia dos temas, na harmonia das formas, no enfrentamento às dificuldades, na resistência às formas hegemônicas e principalmente na presença única do artista se fazendo mostrar a partir da potência da sua mão criadora.
Embora cercada de polêmica, a expressão naïf ainda permanece carregada de estereótipos, surgidos em grande parte do próprio mercado que se formou em torno da chamada arte popular, que em certa medida estimula a produção e dá condição aos artistas de uma sobrevivência digna a partir do seu trabalho, mas por outro pode ser um limitador de expressões verdadeiramente espontâneas, causando um efeito padronizador da arte. Por outro lado, a influência do mundo contemporâneo, e suas facetas sociais, políticas, tecnológicas e midiáticas, além da aproximação com a arte contemporânea, tem trazido um frescor à arte naïf e lhe retornado aquilo que de mais essencial a caracteriza, que é a relação cotidiana com a vida.
Para qualquer artista, e não seria diferente com aqueles de origem popular e produção espontânea, a arte passa a fazer sentido quando da relação obra/vida, já que a vida não existe sem a dimensão estética, e vida/obra, já que a arte é a representação da vida, seja ela pela expressão de suas histórias - das vividas ou imaginadas -, seja pela expressão de sua emoção. Dessa forma, não há o que duvidar que o que se apresenta nesta edição da Bienal Naïfs do Brasil é o sumo da mais legítima expressão genuína. É quase uma reação de uma série de artistas independentes, com perceptível presença de seus signos próprios, uma identidade pessoal e, por consequência, regional e nacional deliberadamente marcada, tendo a intuição como seu principal instrumento, independente dos lugares de onde vêm ou vivem. Embora possam até ter sido preteridos em outros salões, trazem o que de mais puro têm dentro de si, sem se preocupar com um suposto mercado, ou conceitualismos estéticos e acadêmicos.
É bastante claro identificar, mesmo com apenas duas obras inscritas de cada artista - e não é possível não fazer referência àqueles que ou já participaram de outras edições do evento, ou àqueles que já têm um reconhecimento na área -, uma coerência na produção. Às vezes, mesmo com temas diversos, percebemos o traço que tanto caracteriza aquele artista, a sua organização da composição, as suas cores recorrentes, até os seus vazios e/ou preenchimentos. Longe de afirmar que o artista deve recorrer a uma fórmula para mostrar coerência do seu trabalho; digo apenas que é possível perceber a lógica que abastece a expressão e como a sua marca estará presente, independente de que rumo sua produção tomar.
Para nós do Sesc, e em especial para o meu trabalho na área de artes visuais, cuja dedicação já passou pela gestão do acervo de obras de arte e agora se debruça às questões da ação educativa, é sempre um presente nos defrontarmos com essas obras e, sobretudo, com esses artistas, que, mais do que somente exporem seus trabalhos, nos ensinam a olhar o mundo de forma diferente, ora mais crítica, ora mais lúdica. Ora mais calcada no real, ora a partir de uma experiência onírica. E não há nada mais genuíno no campo da arte do que o seu poder transformador do olhar.