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Oscar D’Ambrosio

Universo fascinante, diverso e desafiador

Participar da Bienal Naïfs do Brasil 2014, promovida pelo Sesc Piracicaba, é motivo de orgulho e um desafio. Orgulho, por ser o principal evento do gênero no Brasil. Desafio, pelos obstáculos que isso traz numa área em que há mais incertezas do que certezas, o que é maravilhoso na arte.

Uma dificuldade intrínseca do evento está no seu foco, ou seja, na identificação do que vem a ser arte chamada naïf. É claro que já existe bibliografia e massa crítica sobre o assunto, mas ainda há discrepâncias conceituais no entendimento do que venha a ser essa arte, principalmente perante a diversidade no Brasil.

Algo que precisa ser retomado é a simplificação; entendo-a não como simplismo, mas como uma maneira de conseguir identificar o objeto que está em foco. Para ser simples, é preciso ir muito a fundo de um assunto – e a ideia de naïf ainda precisa ser aprofundada entre os estudiosos do tema.

Entendo que a avaliação de uma obra do gênero necessita ser um processo que costumo chamar de ponta a ponta, ou seja, demanda saber de qual artista estamos falando (biografia, origem, condições de trabalho), o que ele produz (a sua poética, entendida como intenção, e a sua estética, entendida como resultado) e para onde o seu trabalho aponta (retomada do que já produziu, manutenção do estágio atual ou tendência de alterações futuras).

Pensa-se muitas vezes que um artista popular tem entre suas características a estagnação. Ledo engano. Ele também pode e deve inovar dentro de sua expressão e visão de mundo. A questão é como cada um dá encaminhamento a esse desafio.

A relação dos artistas chamados naïfs também não pode ser ignorada. Não são poucos os que começaram a direcionar a sua produção para o mercado, seja por comodismo, seja por necessidade financeira. Estar antenado com aquilo que as poucas galerias do gênero demandam não é bom ou mau em si mesmo, mas levanta questões sobre a autenticidade e ingenuidade das produções num mundo cada vez mais massificado e globalizado.

No diálogo com outros artistas, naïfs ou não, curadores, críticos e galeristas, o artista chamado naïf pode perder a sua força vital, tornando-se uma espécie de escravo de influências externas. Perdendo sua energia visceral para agradar a quem quer que seja, o prejudicado é o seu próprio trabalho e a arte como um todo.

naïf se colocou, historicamente, desde o pai de todos, Henri Rousseau, como aquele capaz de transformar a realidade. Isso não significa necessariamente copiar o mundo que entendemos como real ou torná-lo mais belo ou mais feio. Quer dizer manter a capacidade de sustentar uma relação de originalidade com ele, criando um resultado plástico.

Um risco da chamada arte naïf é cair no aparentemente bem pintado, gerando empatia com o público. Isso até pode acontecer dependendo do artista, mas é preciso desenvolver o senso crítico de perceber como o agradar ao outro pode vir a ser uma estratégia visual e não uma necessidade interior, mãe do poder estético dos naïfs.

O incentivo à melhoria constante é o grande dever do críticos, curadores e das universidades. Estudar a arte chamada naïf significa praticar uma missão de diálogo com esses artistas que se espalham pelo país, levando uma mensagem de perene aprimoramento do que é feito, no sentido de criar uma consciência daquilo que significa ser naïf e de como essa poética é forte ao ser valorizada por quem a faz e por quem a vê hoje e no futuro.

Assim, existe uma caminhada permanente de indicar veredas para os artistas e para o público. Não se trata de criar heróis ou modelos de sucessos, mas de realizar uma justiça histórica com os artistas que abriram vertentes e conquistaram espaços para a grande família dos naïfs. Esquecer esses nomes é uma injustiça histórica e um crime contra a história da arte brasileira.

Esse resgate daquilo que foi feito de melhor, associado a um conhecimento do presente e à busca de tendências e talentos para o futuro em termos de curto, médio e longo prazo, deve ser realizado principalmente de uma maneira: conversas cara a cara. É necessário falar com esses artistas, saber quem são, compreender o que produzem e como o fazem.

É indispensável conhecer o todo que permeia o entorno dos criadores naïfs para conhecer melhor os detalhes de suas obras nos mais variados suportes. Vida e obra se mesclam e infinitas relações nos desafiam a cada instante. Ignorar essa dificuldade é deixar de lado uma riqueza artística e cultural que nos ajuda a desvendar melhor o Brasil interior de cada artista do gênero e de cada um de nós como indivíduos e como cidadãos.

Mergulhar no profundo dos naïfs do Brasil significa utilizar as habilidades desenvolvidas pelas Humanidades (Artes Visuais, Sociologia, Psicologia, entre outras) e pelas Ciências Exatas (Física, Matemática, Química, entre outras). Afinal, a obra de arte se dá nessa interseção entre o que se pensa abstratamente como indivíduo dentro de um grupo (Humanidades) e o que se faz concretamente com os materiais (Ciências Exatas).

Acima de tudo, trabalhar com a arte naïf demanda manter a própria insanidade dentro dos limites do socialmente aceitável. Somente assim é possível abarcar a diversidade de expressões, de artistas e de regiões de um Brasil que pouco conhecemos e que, a cada dois anos, cristaliza, na Bienal Naïfs do Brasil, uma exposição, um mundo de diversidades, um universo plástico fascinante, porque desafiador.

Oscar D’Ambrosio é doutor em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Mackenzie e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da Unesp.